O sítio de Montélios e as origens do culto jacobeu na terra bracarense

PAULO ALMEIDA FERNANDES

Instituto de História da Arte da NOVA FCSH. Membro do Comité Internacional de Especialistas do Caminho de Santiago

Quase todos os peregrinos que saem de Braga passam obrigatoriamente pelo antigo convento de São Francisco de Real. Grande parte deles fá-lo ainda de madrugada e alguns não se detêm diante deste singular edifício o tempo suficiente para compreenderem a sua história complexa. Nos dias que ainda faltam até Santiago de Compostela, do sítio de Montélios ficará uma difusa memória, entre tantas outras que irão compor o álbum de memórias da peregrinação.

Não foi, porém, sempre assim. Durante séculos, este mesmo sítio foi um importante ponto de apoio para os peregrinos e a sua história esteve ligada à primitiva casa construída em Compostela em honra do apóstolo Santiago.

No ano 883, o que restava do mosteiro construído por São Frutuoso (no qual se integrava a capela-mausoléu do fundador) estava na posse da Igreja de Santiago de Compostela. Permanecem por explicar os contornos desta transferência de propriedade. O sítio parece ter sido presuriado por um presbítero chamado Cristóvão, em data incerta na década de 60 do século IX. Foi precisamente nesses anos que a monarquia asturiana consolidou o seu domínio no ocidente peninsular, com as presúrias oficiais de Porto (868), Chaves (872) e Coimbra (878). Por esses mesmos anos, Braga passou a ser sede de território, teve a sua diocese restaurada e a sede do primeiro condado portucalense estabeleceu-se em Guimarães.

Continua a ser difícil compreender a ação do enigmático presbítero Cristóvão. Com probabilidade, foi um agente da Igreja asturiana que acompanhou o processo de expansão impulsionado pelo monarca de Oviedo e seus diretos sucessores, numa dinâmica integradora de territórios a sul das Astúrias protagonizada por nobres, clérigos e homens livres, atraídos pelas vantagens de possuir e organizar novas terras. Cristóvão não vinculou o sítio de Montélios à Igreja de Braga, da qual se conhece um bispo chamado Fredosinho, documentado ao redor de 873, o mesmo ano em que Afonso III promoveu oficialmente a integração da cidade na esfera asturiana. Também não ofereceu aquele tão simbólico lugar à diocese de Iria Flavia, onde residia o bispo que geria a dinâmica construtiva que já então se verificava em Compostela. Ao invés destas mais naturais doações, Cristóvão resolveu unir a memória de São Frutuoso ao novo e fulgurante polo devocional do noroeste peninsular. Na década de 60, haviam passado menos de quarenta anos sobre a “descoberta” do túmulo do apóstolo Santiago na floresta de Compostela e estava em marcha um processo de afirmação do culto jacobeu pelo atual Noroeste português, como se confirma pela igreja dedicada a Santiago em Castelo de Neiva, precisamente nos anos 60 daquele século IX.

A doação do presbítero Cristóvão foi confirmada em 883 pelo rei asturiano Afonso III, o que sugere que a ação daquele clérigo terá sido de alguma forma concertada com a estratégia da monarquia. Montélios foi, afinal, o primeiro capítulo de várias doações régias à Igreja compostelana de propriedades bracarenses e vimaranenses. Em 895, aquele mesmo rei doou a herdade de Creixomil, nos arredores de Guimarães. Em 899, ano em que foi sagrada a primeira catedral de Compostela, o monarca integrou no seu património a antiga uilla de São Vítor, localizada na área suburbana de Braga e um dos templos mais antigos deste território.

Mesmo após o fim do reino asturiano, os sucessores de Afonso III continuaram a engrandecer o património de Compostela com propriedades na área de Braga. Em 911, no mesmo ano em que se definiram os limites da diocese de Dume (certamente para não interferir com a propriedade de Montélios), Ordonho II doou a ecclesiam Sancti Johannis in Ripa Ave, ou seja, a igreja de São João da Ponte. Quatro anos depois, o mesmo monarca passou para a posse de Compostela a uilla da Correlhã, nas proximidades de Ponte de Lima. Também o mosteiro de Antealtares foi contemplado com terras na zona de Braga, ainda que em data mais tardia (985).

Todas estas doações ilustram um processo de tutela efetiva da Igreja compostelana sobre pontos-chave do território de Braga. Tratou-se de uma dinâmica que percorreu cerca de meio século e que contemplou grandes e estratégicas herdades fundiárias, mas também templos de especial devoção nos arredores de Braga, assim denunciando a intenção de Compostela em apoderar-se de centros devocionais locais. Neste contexto, Montélios tinha ainda o peso suplementar de associar à nova Igreja formada no Noroeste peninsular um antigo centro monástico de fundação visigótica, em tempo de uma monarquia que afirmava parte da sua legitimidade pelo carácter neovisigótico dos seus representantes. Todas estas doações ajudam também a compreender a intervenção artística efetuada sobre a capela-mausoléu de São Frutuoso, na transição para o século X, e a ação do bispo compostelano Diego Gelmírez, em 1102, naquilo que a historiografia apelida de Pio Latrocínio. Mas essas são já outras histórias.