O itinerário e o destino de umas relíquias preciosas

PAULO ALMEIDA FERNANDES

Instituto de História da Arte da NOVA FCSH. Membro do Comité Internacional de Especialistas do Caminho de Santiago

Para os mais familiarizados com a história medieval, o Pio Latrocínio de 1102 permanece como um episódio que mancha a honra portuguesa. Sem que ninguém o previsse ou pudesse impedir, o poderoso bispo compostelano Diego Gelmírez, depois de dignamente hospedado no claustro da Sé de Braga pelo seu homólogo Geraldo (futuro São Geraldo), acedeu ao interior de igrejas em redor da cidade e apoderou-se das relíquias ali depositadas, levando-as para Compostela sem aparente reação.

O acontecimento é mais complexo do que esta linear sucessão de factos. Afinal, a Igreja compostelana era proprietária das igrejas de São Vítor, Santa Susana e São Frutuoso de Montélios, o que explica por que razão se furtaram relíquias destes templos e não de outros. Um capítulo da História Compostelana, escrito por um homem que terá tido parte ativa nos factos (D. Hugo, secretário de Gelmírez e futuro bispo do Porto), acrescenta mais motivos para o sacro roubo: os corpos dos santos jaziam desordenadamente nas igrejas (alguns estariam ocultos dos fiéis) e não havia qualquer veneração que os dignificasse. Tais informações propagandísticas ajudaram a justificar tão reprovável furto. Finalmente, estas ações não ocorreram de noite, nem clandestinamente, mas sim à luz do dia, por vezes depois da celebração de missas nas próprias igrejas, e durante vários dias de estadia da comitiva no Norte de Portugal.

A reação popular (se é que existiu) só parece ter sucedido depois de subtraído o corpo de São Frutuoso, santo de maior devoção regional naquela altura e, por isso, deixado propositadamente para o fim. Só depois de se apoderar destes restos é que a comitiva se apressou a deixar Portugal, avançando as relíquias até mais rapidamente que o restante grupo, até chegar ao primeiro ponto seguro em terra galega: Tui.

Em Compostela, os santos bracarenses foram recebidos por uma multidão logo no Milladoiro e conduzidos à catedral em solene procissão liderada pelo bispo. À exceção de Santa Susana, os restos mortais foram depositados em altares da catedral galega. Em 1106, Frutuoso passou a dispor de capela própria, um lugar físico autónomo dentro da catedral do apóstolo Santiago, certamente para atrair os peregrinos que ainda se deslocavam a Montélios para venerar o túmulo vazio do santo. Sem a sagrada relíquia do seu corpo, esses peregrinos poderiam agora continuar até Compostela, onde existia lugar específico (digno) para tal veneração. E assim se começou a celebrar o dia da trasladação de 1102: 16 de dezembro.

Consumada a diáspora das relíquias para Compostela, Geraldo de Braga apelou ao papa Pascoal II logo no início de 1103. Consta que terá pedido o regresso dos veneráveis restos. O sumo pontífice não parece ter sido permeável à totalidade das reclamações e, por isso, as relíquias de Frutuoso tiveram de esperar um pouco mais até regressarem a Braga: exatamente 864 anos.

Foi a 19 de outubro de 1966, nas comemorações dos 1300 anos do falecimento de São Frutuoso, que os restos do santo voltaram. Solenemente entregues em Compostela, passaram por Pontevedra e Tui, antes de entrarem no país por Valença do Minho, onde o arcebispo de Braga as recolheu. Já era noite quando a comitiva passou pela Porta Nova, em concorrida procissão. Não regressaram, porém, todas as relíquias. Como foi verificado na altura, o esqueleto estava muito incompleto e Compostela reservou alguns fragmentos, não fosse o culto pelas relíquias voltar a ditar o ritmo da peregrinação jacobeia.

A 16 de abril de 1967, as relíquias foram depositadas permanentemente na igreja de Real, numa cerimónia em que o adro foi pequeno para tanta gente que quis testemunhar o cumprimento da vontade de Frutuoso em, por fim, habitar eternamente o “seu” sítio de Montélios. Mesmo sem os fragmentos que permanecem em Compostela (assim se preservando a memória da sua diáspora), o restante corpo juntou-se ao pequeno osso ali encontrado no século XVI.

Hoje, num mundo em “desreliquização”, toda esta história parece ter pouco a ver com a nossa vida. E, paradoxalmente, há uma qualquer afetividade identitária que nos motiva a querer saber (e fazer) mais sobre umas discretas relíquias que dão sentido ao sítio de Montélios e que são a matéria diferenciadora deste extraordinário lugar.